Aurélio MIchiles: um artista de diversas linguagens

*Por Sávio Stoco e Thiago Bríglia

foto aurelio

 

            Topamos - eu e o amigo Thiago Bríglia - ir atrás de saber mais sobre o diretor de um documentário que tanto admirávamos de longe, O cineasta da selva (1997). Filme que nos encantava pela pesquisa e apresentação das imagens do arquivo de Silvino Santos que tanto nos diz sobre o passado da região onde moramos. Filme que nos inspira na mistura de ficção e documentário. Filme que conhecemos aos poucos pelos trechos que flagrávamos surpresos quando esporadicamente era exibido na TV Cultura e que só pudemos ver completamente quando lançado comercialmente em DVD, em 2009. Com a tarefa de entrevistar o diretor por conta da homenagem do NAVI/UFAM nesta V Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, descobrimos muito mais: um artista interessado em diversas linguagens, atento para contradições do espaço amazônico, suas populações, comprometido com o tempo em que viveu e está vivendo. E ainda por cima, pela sua maneira aproximante de falar, deixando a produção audiovisual tangível, sem preocupações desnecessárias de auto-afirmação. Nada dessas coisas, que perpassam o conjunto da sua obra, estava tão claro como estará agora para os que tem a mesma idade dos primeiros documentários dele - como nós dois entrevistadores. Mesmo porque não havia formas acessíveis de conhecer seus filmes – como a V Mostra vai oferecer a muitos.

 

 

 


 

 

            O encontro se deu no dia 18 de agosto de 2011 em uma das produtoras onde Aurélio desenvolve seus projetos, localizada em Higienópolis, bairro da capital paulista onde ele também reside. Para esta publicação, foram selecionados alguns dos principais trechos.

 

 

 

 

 

            “Tenho a impressão que a primeira imagem que tenho do cinema é de um desenho animado. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos quando eu e meus dois irmãos pegamos sarampo. Meu pai contratou uma pessoa pra projetar um filme em casa. Foi a primeira vez que vi o cinema, foi nesse momento. Eu me lembro do evento, mas não me lembro exatamente o que era o filme. Pode ter sido Tom e Jerry, Pato Donald, Mickey, alguma coisa assim...  Guardo este evento: uma coisa projetada num pano branco e o barulho do celulóide correndo nos dentes do carretel, dentro do projetor. A partir daí eu me encantei.  E não podia ser diferente. Eu faço parte de um mundo – Manaus - que não tinha televisão até os anos 1970. Era uma sociedade radiofônica. As crianças escutavam músicas, histórias no rádio ou nos toca-discos. Não existia a cultura da televisão ainda, como no resto do mundo e até em Belém que estava integrada. Não era como agora, mas já funcionava. Mas Manaus naquele momento, início dos anos 1960, era uma cidade de 200 mil pessoas. Tinha muitos cinemas no Centro. Quando você saía de casa você via o cinema. O cinema não era só um evento que você vai e assiste um filme. Era uma experiência física. Porque você conhecia as pessoas. Quando passava um filme no Cinema Polytheama ou no Cinema Odeon, que eram da mesma rede, você via o funcionário correndo com as latas para levar para a sessão seguinte de um para o outro. Só esse frenesi que passava em frente à  minha casa já era marcante. Depois, na medida em que fui crescendo, o cinema se tornava encontro social. Era lá que você ia encontrar os amigos, ia ver as meninas, apreciar as aspirações sociais daquele núcleo comunitário que era Manaus que vivia no Centro. Minha casa era perto do Teatro Amazonas e do Cine Odeon, que hoje não existe mais mas era um prédio belíssimo. Hoje é um shopping center horroroso. Tinha o Cine Avenida com o seu Aurélio, que me chamava de xará. Então, as coisas foram se conectando na medida em que fui crescendo”.

 

 

            “Minha geração não fazia diferença entre arte e política. A arte estava a serviço de uma idéia transformadora, revolucionária. Esse era o tema dos anos 1960. Hoje, arte é muito mais celebridade do que uma outra coisa que você pode imaginar. Se encontra fora de eixo, assim penso. Mas naquele momento, era. Pra você fazer arte, era como se você tivesse pegando em metralhadora, fazendo algo revolucionário”.

 

 

            “Depois, nos anos 70, durante a ditadura do governo Médici, houve o grande projeto de ocupação da Amazônia: 'Terras sem homens para homens sem terras'. Mandaram os nordestinos para lá e foi gente do Mato Grosso, Paraná, gaúchos para ocupar a Amazônia. Foi aí que a Amazônia tradicional sucumbe. Essa Amazônia aquática, essa Amazônia da hidrovia, cabocla, indígena, começa a ficar ameaçada. Surge uma outra Amazônia, que é a da terceira margem do rio que são as estradas, rodovias, o gado! É a Amazônia de quem vive de costas pro rio, de quem come carne e não mais peixes. Os núcleos já são formados em torno de um posto de gasolina, um puteiro e um  núcleo desses evangélicos. Aí começa a vida da Amazônia hoje; bem degradada, sem um núcleo ligado à sua tradição, à nossa tradição. Eu tenho a impressão de que a minha geração, até 1968, é a última que tem algum vínculo com o ciclo da borracha. Depois começa o desmanche da Amazônia que é isso que presenciamos hoje, uma afronta, um desrespeito às tradições e à paisagem, incluindo-se a arquitetura e o urbanismo, da Amazônia”.

 

 

            “Entre os filmes que passaram no cineclube do Grupo de Estudos Cinematográficos de Manaus, um dos mais extraordinários, um dos que eu mais gosto até hoje, que não esqueço, é um filme do Humberto Mauro: A velha a fiar (1964). Aquilo me revelou um cineasta que depois eu fui atrás e encontrei uma obra extraordinária. Eram curtos documentários que me fizeram dizer: "puxa, isso que eu quero fazer: documentário". E depois assistindo um documentário sobre o “joão-de-barro” (O joão de barro, 1956). Eu fiquei tão encantado com aquilo, com a verdade e com a qualidade técnica da fotografia e a paciência do fazer do cinema que eu pensei comigo mesmo: ‘eu quero fazer isso.. É isso que eu quero fazer!’. Os meus documentários na verdade sempre são uma revisitação da minha memória. Esse filme do Humberto Mauro sobre o “joão-de-barro” que eu adoro, usei ele quando eu fiz o Arquitetura do lugar (2000). Encerro com um trecho desse documentário que para mim é um símbolo: o joão-de-barro é um grande arquiteto. Depois descobri que o joão- de-barro é o símbolo da Argentina. Os argentinos transformaram ele em símbolo e no Brasil ele está ameaçado em muitos lugares”.

 

 

            “Nos cineclubes eu me despertei. Ficava querendo saber quem eram os diretores, os filmes... Eu tinha essa curiosidade de ir atrás de saber. Outro filme que me chamou atenção foi Faca na água (1962), do Roman Polanski; um filme misterioso que eu queria saber exatamente o significado daquela complexidade. Nesse momento os filmes eram muito adultos; hoje o cinema se infantilizou. Os filmes parecem querer fugir da complexidade narrativa. Ponho na conta do cinema norte-americano essa responsabilidade. Nos 60, Glauber proclamou um cinema da “estética da fome”, mas o que vemos hoje é um cinema pobre, porque adula e mima o grande público em detrimento do lucro fácil.  Hoje, na primeira cena, os personagens se apresentam e você já sabe mais ou menos o que vai acontecer com ele, tem algum ou outro suspense, um gritinho sem mistérios... Essa é que é a verdade. Que filme que é complexo hoje? Talvez um ou outro, mas não é americano. Lars Von Trier (diretor dinamarquês), por exemplo, esse já tem complexidade. A árvore da vida? (Terrence Malick, 2011). Mesmo o Woody Allen já foi assimilado, virou um apêndice da literatura da normalidade. Se você for visitar os livros mais vendidos é um pouco como esses filmes, uma espécie de auto-ajuda para as pessoas. Hoje eu estava lendo alguma coisa que dizia que as pesquisas de público da telenovela brasileira mostram que as pessoas não estão mais preocupadas com o vilão, como ele é etc. Antigamente eram. A pesquisa diz que o público não está mais preocupado com isso. O vilão virou herói. Será isso mesmo que a humanidade busca, essa falta de caráter? Francamente, estou fora”.

 

 

“As pessoas que faziam cinema ali (em Manaus a partir dos anos 1960), elas fizeram cinema para este festival (I Festival de Cinema Amador do Amazonas, 1966). Elas não têm outros filmes. Em Manaus era muito difícil e até hoje ainda é. É um pouco forçação de barra para você entrar no eixo da produção nacional. Parece que você fica falando com uma parede. Ninguém está querendo te ouvir. Mudou muito pouco nesse sentido. Mesmo assim aqui e ali surgem jovens querendo mostrar o desejo em contar suas histórias em filmes, esta chama me gratifica”.

 

 

“Conheci Lina Bo Bardi (arquiteta do MASP) quando eu tinha 18 anos. Foi uma amizade muito forte, uma pessoa que é referência para mim e me influencia até hoje. A Lina me disse: "Você tem que fazer cinema. Voltar pro Amazonas e contar a histórias do Amazonas. Não fique aqui não, que aqui já tem muita gente contando muitas histórias mixurucas. Conte as grandes histórias da sua terra que ninguém conhece".

“Os meus documentários sempre surgiram de uma demanda. Mas essa demanda eu adapto a uma necessidade pessoal. São respostas a mim mesmo que eu compartilho com quem quiser. Quando eu fiz A árvore da fortuna, em 1992, eu sempre quis pensar sobre o ciclo da borracha. Eu fui em busca de uma resposta e perguntas que eu tinha a fazer de um momento que eu presenciei: aquela paisagem em decadência da borracha da minha infância, aqueles casarões abandonados, aqueles personagens que perambulavam pela rua, que diziam que o pai tinha sido milionário e agora o cara era mendigo. Eu sempre quis saber por que tudo isso aconteceu, como as coisa chegam em cima e depois vai pra baixo. Então são perguntas que eu fiz pra mim e que eu vou com uma resposta que compartilhei. É como se eu colocasse agora no Facebook, no Twitter as questões. "Hoje estou triste!”. É um pouco isso, esse compartilhar. Esse filme sobre o Cosme [Alves Netto] (Tudo por amor ao cinema) é, por exemplo, um compartilhamento de uma questão que eu me pergunto. É uma cinebiografia, mas é sobre uma geração que via o cinema como uma religião. E não é coincidência que as antigas salas de cinema são ocupadas por templos evangélicos porque eram realmente lugares sagrados, de grande confraternização, de  mil lugares, dois mil lugares. Vocês não viram isso; eu vi. O cinema eram os deuses, estrelas, astros. Havia esse maravilhamento da beleza audiovisual. E hoje não tem muito isso. Hoje o cinema lança filmes toda a sexta-feira,  se você não vai assistir, os filmes já vão embora. Vai ficando pra trás.  Mesmo quando você hoje pode ir no Youtube, está lá só um trecho final, início ou metade. Não é mais o sagrado. Os documentários que eu fiz, vou fazer ou estou fazendo, podem até ser uma demanda de terceiros, mas a resposta vai ser pra mim mesmo, para compartilhar com o coletivo”   

 

*Sávio Stoco é jornalista, videomaker e membro do NAVI/UFAM

*Thiago Bríglia é jornalista e documentarista roraimense